sábado, 31 de outubro de 2009

Palavras que saem dos olhos

Minha amiga e cumadre Fran me enviou e adorei! Obrigada!
http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI95894-10473,00-PALAVRAS+QUE+SAEM+DOS+OLHOS.html

Palavras que saem dos olhos

“Helena e eu temos conversado muito com os olhos. Já sei quando ela está com sono e não com fome. Quando o dente dói e quando faz manha. Mas, dia desses, seus olhos me traíram.”

Sinto que os olhos de Helena estão suplicando por algo. Ela ainda não fala nada além de nããã e buuu, mas me parece que, lá no fundo de sua alminha de 6 meses, tem muito a desabafar. Vida de bebê não é um parque de diversões e creio que, se falassem, nossas relações seriam bem diferentes. Nós, adultos, não faríamos eles se sentirem no Barco Viking depois de tomarem 300 ml de leite, nunca falaríamos com eles pela manhã sem escovar os dentes e faríamos a barba antes de roçar nossos rostos em suas bochechas macias.

É fácil, só temos de fazer aquele exercício batido de nos colocar no lugar dos filhos que ainda não sabem falar para saber o que poderia estar entalado em suas gargantas. Imagine um cara de quatro metros de altura nos embalando no colo depois de nos encher de leite. Impossibilitados de falar, choraríamos de desespero e de enjoo, mas toda a nossa angústia seria entendida como “choro de sono”. Quanto mais chorássemos, mais forte o gigante nos embalaria cantando a mesma melodia que ele tem certeza de que adoramos e que canta desde o dia que nascemos. Como não dormimos, vem a mãe do grandalhão. Ela diz que estamos é com fome, e faz outra mamadeira. Mamamos, choramos, vomitamos. Normal, alguém diz. O pai do gigante nos pega e começa um serra-serra-serrador. Embriagados, choramos mais. Uma tia manda tirar nossa roupa, deve ser calor. Um tio diz que é a fralda suja, e manda trocar. E a vizinha fala em quebrante e coloca arruda atrás de nossa orelha. Alguém então decide que estamos com cólica. Colocam uma bolsa de água quente em nossa barriga e pressionam nossas pernas contra o nosso peito. Enfim, nos põem na cama e, quando percebem, dormimos. Era tudo o que queríamos.

Creio que, mais do que pela boca, as palavras dos pequenos saem pelos olhos. Eu mesmo fui chamado de idiota três vezes semana passada pelos olhos da Helena. Na primeira, estava lendo jornal com ela nos braços. Depois de uma página inteira, percebi que estava quieta demais e desviei os olhos para ela. Helena olhou para mim, olhou para o jornal e, com um ar de derrota, seus olhos me disseram: “Que chato, tanto tempo para ler e escolhe agora que está comigo...” Na segunda, fui trocá-la e percebi que suas dobrinhas estavam assadas. Não tive dúvida, peguei a pomada que a mão alcançou primeiro. Crente do quanto estava sendo um paizão, passei aquele creme azul quando percebi seus olhinhos me fuzilando. “Essa pomada é para o rosto”, falou minha mulher, horas depois. Na terceira vez, fui pegar Helena pela manhã e senti que ela me evitava. Achei estranho, até me lembrar do patê de alho que havia comido na noite anterior.

Helena e eu temos conversado muito com os olhos. Já sei quando ela está com sono e não com fome. Quando o dente dói e quando faz manha. Mas, dia desses, seus olhos me traíram. Sem mais nem menos, ela começou a chorar. Não era sono, não era fome, não era manha. Um choro sentido que só parou quando a mãe chegou do trabalho e a pegou no colo. Seus olhos sorriram e os meus ficaram tristes. E Helena entendeu ali que esse gigante aqui pode chorar também. Até de ciúmes.

Júlio Maria é editor de Variedades do Jornal da Tarde (SP), pai de Helena, de 6 meses, e de Eduardo, de 7 anos, e vive tentando entender o que se passa nas cabecinhas dos filhos

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